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Paola Machado

É verdade que nosso corpo tem "memória muscular"?

Paola Machado

05/06/2018 04h00

Crédito: iStock

Treino desde meus 11 anos de idade. Fiz jiu-jitsu, capoeira, corria quase todos os dias e fazia treinos de musculação mais leves complementares aos meus treinos. Sempre fui muito assídua a prática esportiva e, até hoje, combino exercícios de luta com musculação. Porém, depois dos meus 29 anos, descobri que tenho uma patologia chamada Síndrome de Tietze, que acomete minhas costelas. De vez em quando, por conta da dor, tenho que me afastar do treinamento e ficar de repouso. Tem vezes que fico quase um mês sem treinar e, nesse período, perco força, massa magra e emagreço.

Eu tenho lá meus motivos para me afastar dos treinos de vez em quando, porém, por diversas razões e fatores, algumas pessoas também passam por períodos sem treinar e bate aquele sentimento de: "Poxa! E tudo o que eu fiz? O treino é ingrato demais. Treinei uma vida para, em um mês, perder tudo o que construí?"

Porém, após esse período inativo, voltamos a rotina de treino e, surpreendentemente, a resposta ao exercício é muito mais rápida. Por que será que isso acontece?

Memória muscular realmente existe?

A memória é um processo em que a informação é codificada, armazenada e recuperada, sendo que essa memória relacionada a musculatura faz com que, em pessoas já treinadas que pararam de treinar por algum motivo e restabelecem a rotina de treino, tenham uma recuperação mais rápida da força e massa muscular.

Alguns estudos relacionam a dependência da memória à ação do sistema nervoso central e à aprendizagem motora, por conhecimento do gesto – um exemplo deste, é aquela expressão: "É como andar de bicicleta, que a gente nunca esquece".

Porém, uma revisão publicada por Gundersen (2016), mostra que a memória muscular no músculo esquelético de pessoas que já tiveram processo de hipertrofia (aumento) muscular existe e faz com que a fibra muscular se recupere de forma mais rápida.

Eles explicam esse processo por meio dos mionúcleos.

O que acontece é que as fibras musculares que não tiveram contato com o treinamento, àquelas que estavam ali no momento que teve que ficar afastado do treino, quando treinadas recrutam os mionúcleos de células satélites que existem em fibras musculares que já tiveram contato prévio com o treino.

Esses mionúcleos, são provenientes da migração, fusão e diferenciação das células satélites a partir de um determinado nível de hipertrofia, que surgem para facilitar a distribuição de substâncias dentro da célula – reduzindo a distância de transporte dessas substância – e, consequentemente, facilitando a síntese protéica.

Porém, esses mionúcleos só aumentam a partir de um crescimento de 17 a 36% do citoplasma e têm uma duração de dois, três, quinze anos – e até de forma permanente dependendo da individualidade biológica – em humanos, sendo assim a recuperação da força e massa muscular nesse período mais rápida.

Esse processo ocorre mesmo nas fibras musculares com atrofia grave. Os mionúcleos são protegidos contra a atividade apoptótica – morte celular – elevada.

Há uma relação proporcional a quantidade de mionúcleos ao processo de hipertrofia. As fibras que atingiram uma maior quantidade de mionúcleos crescem mais rapidamente quando submetidas a treinamento de força.

Em termos práticos, a memória muscular está relacionada:

  • Ao seu nível de treinamento: quanto mais treinado, melhor sua memória muscular.
  • A sua idade: o recrutamento de mionúcleos é inversamente proporcional a idade, reduzindo a eficácia da memória muscular com a idade.
  • Ao tempo de inatividade: quanto maior o tempo, menor o impacto da memória muscular.

Um outro estudo recente, aceito pela Scientific Reports em janeiro deste ano (2018), mostra que há também um importante papel epigenético (que é a modificação das funções genéticas que herdamos, mas não alteram a seqüência de DNA, não sendo transmitida de uma geração para outra) para vários genes no processo de hipertrofia muscular e memória muscular, sendo que alguns genes (como o GRIK2, TRAF1, BICC1 e STAG1) são sensíveis ao exercício de resistência aumentando a expressão desses genes e a massa muscular. Contudo há necessidade de estudo de diversos outros genes.

A memória muscular nada mais é que um "presente" que seu corpo te dá aos anos incansáveis de esforço. Por isso, não pense que o exercício é "ingrato", pense que, quanto mais valor você der à ele, mais ele te ajudará quando tiver que se afastar por algum motivo importante do treino.

Referências:
– Seaborne, R.A.; et al. Human Skeletal Muscle Possesses an Epigenetic Memory of Hipertrophy. Scientific Reports. 8:1898. 2018.
– Gundersen, K. Muscle memory and a new cellular model for muscle atrophy and hypertrophy. Journal of experimental biology. 235-242. 2016.
– Liu, Q.; et al. Muscle Memory. J Physiol. p. 775-776. 2011.
– Bruusgaard, J.C.; et al. Myonuclei acquired by overload exercise precede hypertrophy and are not lost on detraining. v. 107, n. 34. 2010.

Sobre a autora

Paola Machado é fisiologista do exercício, formada em educação física modalidade em saúde pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), mestre em ciências da saúde (foco em fisiologia do exercício e imunologia) e doutoranda em nutrição pela UNIFESP. É autora do Livro Kilorias - Faça do #projetoverão seu estilo de vida (Editora Benvirá). Atualmente, atua como pesquisadora, desenvolvendo trabalhos científicos sobre obesidade, e tem um canal de desafios (30 Dias com Paola Machado) onde testa a teoria na prática. Também é fundadora do aplicativo aplicativo 12 semanas. CREF: 080213-G | SP

Sobre a coluna

Aqui eu compartilharei conteúdo sobre exercício e alimentação para ajudar você a encontrar o caminho para um estilo de vida mais saudável. Os textos são cientificamente embasados e selecionados da melhor forma possível, sempre para auxiliar no seu bem-estar. Mas, lembre-se: a informação profissional é só o primeiro passo da sua nova jornada. O restante do percurso depende 100% de você e da sua motivação para alcançar seu objetivo.