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Paola Machado

Adolescentes obesos estão sujeitos a ter esteatose hepática não alcoólica

Paola Machado

21/02/2020 04h00

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A obesidade na infância e na adolescência é considerada atualmente uma epidemia global, apresentando alta prevalência em países desenvolvidos e em desenvolvimento. As novas evidências sustentam a hipótese de que a obesidade é uma doença caracterizada não somente por apresentar origem multifatorial, mas também como uma doença inflamatória crônica. O aumento de marcadores inflamatórios pode ser o responsável pelo desenvolvimento da síndrome metabólica. Sabe-se que o excesso de gordura visceral é mais deletério à saúde estando intimamente relacionado ao desenvolvimento de doenças crônicas degenerativas, como a esteatose hepática não alcoólica (EHNA), que é considerada atualmente como uma manifestação hepática da síndrome metabólica. Embora a patogênese da EHNA ainda não esteja muito clara, acredita-se que a adiposidade visceral seja determinante da resistência insulínica, que exerce um importante papel nestas doenças.

Existe um consenso de que a resistência insulínica seja um forte preditor no desenvolvimento da EHNA em adolescentes, no entanto, investigações para identificar a relação desta doença com a adiposidade visceral e citocinas anti e pró-inflamatórias são escassas na literatura.

Nos últimos anos, o tecido adiposo tem sido identificado como um órgão endócrino, pois secreta vários fatores como peptídeos e proteínas bioativas denominadas adipocinas, bem como fatores não peptídicos. As adipocinas influenciam uma variedade de processos fisiológicos, entre eles, o controle da ingestão alimentar, a homeostase energética, a sensibilidade à insulina, a angiogênese, a proteção vascular, a regulação da pressão arterial e a coagulação sanguínea. Alterações na secreção de adipocinas, consequentes à hipertrofia e/ou hiperplasia dos adipócitos, podem constituir situação relacionada à gênese do processo fisiopatológico da obesidade e suas complicações, como o desenvolvimento da EHNA.

A leptina é um hormônio proteico específico codificado pelo gene obesidade (ob), produzido e secretado pelo tecido adiposo, tanto de seres humanos quanto de roedores, sendo que seus teores circulantes são proporcionais à massa adiposa. Este hormônio atua como um fator de sinalização entre o tecido adiposo e o sistema nervoso central, regulando a ingestão alimentar e o gasto energético. Este hormônio funciona como um sensor do balanço energético, que é parcialmente mediado pela síntese de peptídeos anorexigênicos e também pela modulação de peptídeos orexigênicos, diminuindo a ingestão alimentar.

Muitos estudos têm demonstrado que a leptina tem ação direta e inibitória sobre a secreção da insulina pela ativação dos canais e potássio dependentes de ATP ou via interação com a sinalização da proteína AMP quinase. Evidências sugerem que este hormônio promove a oxidação de triacilgliceróis do tecido adiposo e reduz o acúmulo de gordura, inibindo a lipogênese e estimulando a lipólise. Entretanto, na maioria das pessoas com obesidade, ocorre resistência à ação da leptina, provavelmente devido à dificuldade desse hormônio em atravessar a barreira hemato-encefálica.

Existem três sítios ativos que darão continuidade ao sinal da leptina, sendo assim, a resistência à leptina pode estar relacionada a um defeito no pré-receptor, no receptor ou pós-receptor deste hormônio. O papel da leptina no desenvolvimento da EHNA é ainda controverso na literatura. Um estudo sugeriu que a hiperleptinemia pode promover a esteatose hepática, enquanto outro estudo concluiu que as concentrações de leptina estavam diretamente correlacionadas com a severidade da esteatose, mas não com a inflamação e fibrose.

Outro hormônio descoberto que participa da regulação do balanço energético é a grelina, um peptídeo gástrico composto por 28 aminoácidos, que estimula a secreção de hormônio do crescimento e aumenta a adiposidade. Este hormônio é produzido principalmente no estômago e por células neuroendócrinas funcionando como um sinalizador orexígeno, realizando uma ligação entre o trato gastrintestinal e o cérebro. A produção gástrica deste hormônio é regulada através de fatores nutricionais e hormonais. Observou-se correlação entre concentração circulante reduzida de grelina e a resistência insulínica, as quais se apresentaram alteradas em indivíduos com EHNA.

Outras citocinas pró-inflamatórias como o TNF (fator de necrose tumoral) e a IL-6 (interleucina 6) são secretadas pelo tecido adiposo e estão sensivelmente elevadas na obesidade. São peptídeos vasoativos, os quais podem contribuir para a ativação endotelial e o estado pró-inflamatório. Estes peptídeos também aumentam a RI podendo levar a processos inflamatórios no tecido hepático. Além disso, verificou-se que a resistina está relacionada à resistência insulínica, a qual se acredita exercer papel-chave na gênese da NAFLD.

A adiponectina, com efeitos anti-inflamatórios, é o mais abundante fator específico do tecido adiposo e está envolvida na regulação do balanço energético, desenvolvendo um papel anorexígeno, aumenta a sensibilidade à insulina e inibe a inflamação vascular. Indivíduos obesos apresentam baixa concentração sérica desta substância, a qual se eleva após a redução de massa corporal. A hipoadiponectinemia pode contribuir com a RI e aterogênese. Desta forma, o importante papel da adiponectina na gênese da NAFLD deve-se a prevenção do acúmulo de gordura, dos processos inflamatórios e desenvolvimento de fibrose hepática.

Estudos com adolescentes

Em estudos realizados em adolescentes obesos com idade entre 15 e 19 anos, avaliou-se a concentração de leptina, grelina, insulina, assim como a adiposidade visceral e o diagnóstico de EHNA. Os resultados demonstraram redução significante na concentração circulante de grelina e leptina e na adiposidade visceral (p<0,01). Houve ainda redução percentual na prevalência de EHNA, sendo este um resultado relevante, visto que esta doença pode progredir à cirrose, tanto em crianças quanto em adolescentes obesos. Ao analisar adolescentes obesos com e sem EHNA, verificou-se em indivíduos com EHNA valores significativamente maiores de IMC, gordura visceral e subcutânea, apresentando redução significativa ao término da intervenção interdisciplinar incluindo a prática de exercício físico.

Em outro estudo com 181 adolescentes obesos, a partir de uma análise logística multivariada, foi demonstrado que a gordura visceral, em ambos os gêneros é um fator de risco independente para o desenvolvimento da EHNA, sendo este aumentado em duas vezes a cada 1 centímetro de incremento na gordura visceral. Neste mesmo estudo, os valores de gordura visceral foram distribuídos em quartis e verificou-se que a partir do terceiro quartil, ou seja, os valores a partir de 3,15 cm e 4,2 cm para meninas e meninos, respectivamente, foram indicativos para o aumento significativo na prevalência desta doença. Assim, estudos com enfoque interdisciplinar têm propiciado um entendimento mais amplo possível das consequências da obesidade assim como formas de preveni-la.

A partir de evidências recentes fortalecendo a ideia de que a EHNA é o novo marcador inflamatório da síndrome metabólica, o grupo de estudos em obesidade da UNIFESP buscou metodologias diagnósticas e terapêuticas desta comorbidade associada à obesidade. Foi identificado previamente que aproximadamente 52% dos adolescentes obesos apresentavam algum grau de EHNA e que o consumo de gordura saturada era um forte determinante no desenvolvimento desta doença associada a obesidade em adolescentes.

Posteriormente, foi demonstrado que a expansão da adiposidade visceral apresentou-se como um fator de risco determinante para o desenvolvimento de EHNA, e aumento no grau de comprometimento do hepatócito, sendo importante a análise sistemática deste parâmetro visando o controle não somente da obesidade. Além disso, verificou que após tratamento interdisciplinar de curto prazo, incluindo o exercício físico, houve redução na prevalência de EHNA considerando os lobos direito e esquerdo do fígado (p≤0,05).

Os pesquisadores perceberam sistematicamente durante os últimos anos em voluntários obesos que passaram pelo atendimento interdisciplinar no nosso grupo de estudos que somente o emagrecimento ponderal reflete em mudanças positivas no controle da EHNA, pois a redução massiva de peso corporal pode resultar eventualmente no desenvolvimento desta doença.

Além disso, os resultados dos estudos demonstraram ainda que a redução na prevalência de EHNA se apresentou associada à redução significativa na adiposidade visceral e RI reforçando a importância deste tipo de intervenção para o controle de fatores de riscos comuns a diferentes doenças metabólicas crônicas. Somado a esses achados, uma das evidências mais importantes encontradas em pesquisas clínicas foi que os adolescentes obesos com EHNA apresentaram maior acúmulo de TAV, hiperinsulinemia e RI em relação aos obesos sem esta patologia associada. Nestas condições ocorre um aumento substancial no influxo de ácidos graxos no tecido hepático provenientes da lipólise da gordura visceral via veia portal, o que afeta o metabolismo de lipídios e de glicose, promovendo desse modo a RI .

A partir de análise multivariada observou-se que a adiposidade visceral apresentou-se como fator determinante no desenvolvimento da EHNA, sendo um fator de risco independente. Além disso, para cada 1cm de expansão da gordura visceral em adolescentes obesos houve aumento de 1,97 vezes nas chances do desenvolvimento desta doença (95% CI 1,06–3,66) em rapazes; e 2,08 vezes (95% CI 1,38–3,13) nas moças. Houve correlação positiva da adiposidade visceral com o IMC, a resistência insulínica, e o grau de esteatose hepática.

Os achados neste estudo evidenciaram que a expansão da adiposidade visceral foi determinante para o aumento na prevalência de EHNA, sendo a ultrassonografia um bom método diagnóstico aplicado à população obesa no período da adolescência. Isto foi confirmado com a alta correlação entre a adiposidade visceral e o índice de massa corporal. No entanto, futuros estudos serão necessários utilizando métodos mais precisos como a tomografia computadorizada para se confirmar estes resultados.

Reforçando a importância de um modelo de terapia interdisciplinar para tratamento da obesidade, síndrome metabólica e EHNA; onde foi demonstrando que esse tipo de intervenção parece ser uma estratégia ideal para tratamento dessa patologia que tem sua origem a partir da junção de inúmeros fatores. Abaixo segue figura ilustrativa demonstrando a efetividade da terapia em adolescentes com obesidade após um ano de tratamento, incluindo exercício físico.

*Colaboração da pesquisadora em obesidade e livre docente Dra. Ana Dâmaso e da doutora em ciências da saúde Dra. Raquel Munhoz.

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Sobre a autora

Paola Machado é fisiologista do exercício, formada em educação física modalidade em saúde pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), mestre em ciências da saúde (foco em fisiologia do exercício e imunologia) e doutoranda em nutrição pela UNIFESP. É autora do Livro Kilorias - Faça do #projetoverão seu estilo de vida (Editora Benvirá). Atualmente, atua como pesquisadora, desenvolvendo trabalhos científicos sobre obesidade, e tem um canal de desafios (30 Dias com Paola Machado) onde testa a teoria na prática. Também é fundadora do aplicativo aplicativo 12 semanas. CREF: 080213-G | SP

Sobre a coluna

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